Reportagem especial levanta desafios e caminhos para garantir a oferta de água para gerações futuras e preparar o país para enfrentar as mudanças climáticas
Os impactos da mudança do clima já são visíveis em diversas partes do mundo. Desastres naturais como secas e inundações têm ocorrido com mais frequência e intensidade. No Brasil, alguns dos efeitos que mais preocupam é a escassez hídrica.
Embora o país tenha 12% da reserva mundial de água doce, a distribuição é desigual. A Região Sudeste, por exemplo, responde por quase metade do PIB e tem 45% da população, mas conta com apenas 6% da oferta de água do país. Já a Região Norte, onde vivem apenas 5% da população brasileira, concentra 81% da água doce disponível no Brasil.
Esse descompasso entre demanda e oferta de água pode criar a insegurança hídrica. Além do risco de falta de água em algumas regiões, a insegurança hídrica pode implicar em perdas significativas de produção, aumento dos custos e perda da competitividade da indústria.
Segundo o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade, o cenário exige iniciativas que aumentem a eficiência no uso do recurso e reduzam os riscos de colapso no sistema.
“A segurança hídrica é essencial para a sobrevivência humana e para a geração de emprego e renda. Com os desafios adicionais impostos pela mudança climática, faz-se necessário uma visão mais integrada dos diversos usos da água, com planejamento e construção de alternativas viáveis para o uso mais eficiente desse recurso”. Robson Braga de Andrade – Presidente da Confederação Nacional da Indústria.
O superintendente de Planejamento de Recursos Hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA), Flávio Tröger, afirma que o Plano Nacional de Segurança Hídrica, publicado em 2019, previu investimentos em infraestrutura hídrica estratégica para o país, além de estímulo ao uso de fontes alternativas, como reuso de água de efluentes e dessalinização.
“Se isso não for feito, estima-se que no horizonte de 2035 haja uma população em torno de 70 milhões de pessoas em situação de risco hídrico e perdas econômicas da ordem de R$ 518 bilhões para a indústria e o setor agropecuário”, alerta.
O novo Plano Nacional de Recursos Hídricos propõe diretrizes e ações de revitalização de bacias e uso de soluções baseadas na natureza, além de estímulo ao reúso da água até 2040. Segundo Tröger, o estudo para avaliação dos impactos da mudança climática na disponibilidade de água é uma das inovações do plano.
“Estão previstos estudos para estimar melhor esses impactos nos recursos hídricos e nos diversos setores usuários de água”, detalha. “Por meio deles, vamos apontar aprimoramentos nos instrumentos de gestão visando nos adaptar aos efeitos da mudança do clima.”
Conforme o diretor do Departamento de Obras Hídricas e Apoio a Estudos sobre Segurança Hídrica do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), Francisco Igor Aires Nunes, os eventos climáticos extremos visíveis no Brasil ficam mais intensos e frequentes. Exemplo disso foi a seca nos estados de São Paulo e Minas Gerais, em 2021, que foi a pior dos últimos 90 anos. Ao mesmo tempo, algumas regiões de Minas Gerais receberam o maior volume de chuva dos últimos 30 anos.
“Eventos extremos trazem uma complexidade adicional ao planejamento das infraestruturas hídricas e amplificam os conflitos pelo uso do recurso hídrico”, afirma Nunes. Segundo ele, o governo federal tem buscado desenvolver ações de revitalização de bacias hidrográficas para aumentar a qualidade e a quantidade de água disponível, diminuir eventos erosivos e ter um ecossistema equilibrado. De 2019 para cá, foram investidos R$ 4,8 bilhões em ações e empreendimentos de segurança hídrica.
Mas, afinal o que é segurança hídrica?
Nada básico: Brasil desperdiça 40% da água captada
Um elo importante da gestão dos recursos hídricos é o saneamento básico, eixo em que o país tem desafios enormes. Depois de décadas de uma regulação ruim e permissiva à má gestão das companhias de água e esgoto, a legislação passou a garantir a igualdade de competição pela rede para empresas públicas e privadas. Sancionado em 2020, o novo Marco Legal do Saneamento Básico estabeleceu metas de eficiência e cobertura universal de coleta/tratamento de esgoto e abastecimento de água – sob pena de rescisão dos contratos.
O Brasil precisa investir R$ 593,3 bilhões nos próximos 12 anos para universalizar os serviços de saneamento básico. Desses, R$ 42,7 bilhões devem ser para reduzir o índice de perdas de água para níveis satisfatórios, destaca estudo inédito da CNI.
Hoje, a média nacional de desperdício de água – o quanto se perde no caminho entre a companhia de distribuição e a torneira do consumidor – é de 40%. A cada 10 litros de água, 4 ficam pelo meio do caminho, em razão de canos furados, tubulações defeituosas e dos chamados gatos, que são os roubos de água.
Em países como Alemanha e Japão, o nível de perda de água é inferior a 10%.
Na avaliação da CNI, o país só tem a ganhar com a rápida implantação do novo marco. A ampliação dos investimentos no setor é condição fundamental para o país reverter os atrasos no setor de saneamento.
O sucesso de recentes leilões de companhias de água e esgoto em estados como Alagoas, Espírito Santo e Rio de Janeiro demonstram que o novo modelo de regulação do setor propicia a condição para os investimentos necessários à universalização do saneamento.
Setor industrial reduz o consumo e reaproveita água
A indústria tem participação de quase 20,5% do PIB e usa apenas 9% da água retirada dos mananciais (2020). Conforme dados da ANA, o setor é o terceiro maior consumidor do país, com 184 metros cúbitos por segundo em 2020. Está atrás da irrigação (964 m³/s) e do abastecimento urbano (482 m³/s). A previsão é que o consumo de água pelo setor industrial chegue a 251 m³/s em 2040.
Pesquisa recente da CNI com o Instituto FSB Pesquisa mostra que, entre as 500 médias e grandes empresas entrevistadas, 91% adotam ações para reduzir o desperdício de água e energia e 75% têm processos para reduzir ou eliminar a poluição do ar ou da água.
91% de médias e grandes empresas têm ações pra reduzir perdas de água e energia
De acordo com a diretora de Relações Institucionais da CNI, Mônica Messenberg, a indústria tem feito esforços significativos e incansáveis para o uso mais eficiente de água nos processos produtivos e também em produtos. “Os avanços tecnológicos que o setor tem feito ao longo dos anos para aumentar a eficiência no uso da água são impressionantes. Em alguns segmentos industriais, o reúso chega a quase 100% e, mesmo assim, a indústria continua buscando alternativas para aumentar ainda mais a eficiência”, relata Mônica.
Projetos de reúso de efluentes tratados e dessalinização ganham espaço na indústria
Referência mundial em projetos de reúso e dessalinização, a multinacional GS Inima tem oito concessões de saneamento básico no Brasil e conta com unidades de dessalinização e produção de água de reúso industrial. Em parceria com a Sabesp, a empresa é responsável pela maior planta de produção de água de reúso industrial da América Latina, o Aquapolo, localizado no Polo Petroquímico do ABC, em Mauá (SP). Já no Rio Grande do Sul, no Polo Petroquímico de Triunfo, a GS Inima é responsável pelo suprimento hídrico de todo complexo que reúne nove unidades industriais da região.
O gerente de Novos Negócios Industriais da GS Inima Brasil, Eduardo Pedroza, destaca que a empresa reúne referenciais em mais de 200 plantas com diversas tecnologias de tratamento de água, efluentes e lodo. “Trabalhamos desde processos físico-químicos, biológicos, MBR, MBBR, Anamox, processos com membranas de ultrafiltração e dessalinização, além de outras adotadas no tratamento do lodo para produção de biogás ou secagem solar”, detalha.
Pedroza diz ainda que a empresa tem condição de tornar a água usada em processos industrial totalmente potável para recarga de manancial. No entanto, segundo ele, há barreira cultural e o arcabouço legal não está preparado para isso. “A recarga de manancial é uma estratégia importante diante dos desafios de escassez hídrica e mudanças climáticas.”
Outro desafio consiste que o reúso e a dessalinização de água precisam ter um enquadramento fiscal favorável, similar aos adotados nas atividades saneamento básico, bem como compreender que esse tipo de atividade traz uma compensação ambiental e social relevante em diversas atividades econômicas.
ArcelorMittal constroi maior planta de dessalinização de água do país
A ArcelorMittal, siderúrgica produtora de aço, aços longos e planos, e bobinas – uma das maiores do mundo no ramo –, se destaca com iniciativas envolvendo o uso da água. A unidade de Tubarão, na Região Metropolitana da Grande Vitória (ES), inaugurou a maior planta de dessalinização de água do mar do país. Com capacidade inicial para dessalinizar 500 m³/hora de água, estrutura proporciona maior segurança hídrica para a empresa e para o Estado.
Faz sentido quando olhamos os dados: cerca de 96% da água utilizada pela ArcelorMittal Tubarão vêm do mar, usada na refrigeração dos equipamentos de produção de aço. Os outros 4% vêm do Rio Santa Maria da Vitória. Para mitigar o uso destes 4%, a empresa executa projetos para reduzir esse consumo. Atualmente, o índice de recirculação de água doce da unidade é de mais de 97%.
O sistema é resultado de investimentos de R$ 50 milhões. “O trabalho incluiu avaliação de várias alternativas tecnológicas para dessalinização, análises de qualidade da água do mar, discussões técnicas com fornecedores de todo o mundo, testes em laboratório e até visitas técnicas em plantas na Argentina e nos Estados Unidos”, aponta Jorge Oliveira, CEO da ArcelorMittal Aços Planos América do Sul.
Regulamentação pode impulsionar aproveitamento de recursos
Com os avanços em projetos de saneamento básico, abre-se oportunidade para investimentos em projetos de reúso de efluentes tratados pela indústria. No entanto, é preciso regulamentar a questão para dar mais segurança jurídica a essas iniciativas.
De acordo com estudo da CNI, o Brasil tem potencial para aumentar em quase 13 vezes a capacidade instalada para produzir água de reúso. Atualmente, o país produz pouco mais de um metro cúbico por segundo. Para isso, seriam necessários investimentos de R$ 1,89 bilhão em infraestruturas de reúso de água, que trariam um incremento na economia de quase R$ 5,9 bilhões.
Outras formas alternativas de aumentar a disponibilidade hídrica são a dessalinização e a captação de água das chuvas, que também carecem de regulamentação. Conforme o gerente-executivo de Meio e Sustentabilidade da CNI, Davi Bomtempo, uma adequada e eficiente regulamentação dessas práticas permitirá alavancar negócios e reduzir a pressão sobre os mananciais.
“A disseminação do uso de fontes alternativas de água para abastecimento industrial é uma prática importante que gera impactos positivos ao ambiente e à sociedade e, por isso, deve ser incentivada por políticas públicas”, destaca Bomtempo.
Confira entrevista realizada em 2020 pela Agência de Notícias da Indústria com Alejandro Sturniolo, ex-diretor da Associação Latino-Americana de Dessalinização e Reutilização de Água (Aladyr), em que trata de oportunidades para o Brasil no uso de fontes alternativas de água. Segundo ele, o desafio do país para avanço dessas iniciativas é mais político que técnico.
Indústria defende melhoria no sistema de gestão hídrica
Mesmo fazendo a sua parte para reduzir o consumo de água, o setor industrial é consciente de que é preciso um esforço adicional do governo, empresas e toda a sociedade para melhorar o sistema de gestão hídrica. Confira no infográfico as propostas da CNI para melhorar a governança desse sistema. Confira aqui o sumário executivo do estudo da CNI que será lançado em breve.
Eficiência energética e uso de outras fontes verdes são chave
A questão energética é central tanto para a agenda de adaptação à mudança climática quanto para a de redução de emissões de gases de efeito estufa. No mundo todo, é vista como fundamental para o atingimento das metas de reduções de emissões dos países, principalmente para aqueles que tem forte dependência dos combustíveis fósseis.
Embora o Brasil tenha elevada participação de fontes renováveis na matriz elétrica (84,8%), ainda há grande concentração em fontes hidráulicas, que hoje trazem mais insegurança com as constantes crises de escassez de água. “Precisamos apostar cada vez mais em energia solar, eólica, bioenergia e hidrogênio verde, em que o país tem grande potencial, assim como em projetos de eficiência energética”, destaca Bomtempo.
Outra aposta para reduzir a pressão sobre os mananciais são iniciativas de eficiência energética, bastante comuns no setor industrial, em especial entre empresas energointensivas de médio e grande porte. Essa eficiência pode ser traduzida como o uso de menos energia para obter o mesmo resultado, que pode ser alcançado por meio de melhorias tecnológicas ou de mudanças na gestão energética das empresas.
Uma das iniciativas que contribui para o uso mais racional de água e energia é o Programa Aliança, que está entrando na segunda fase neste ano. Criado em 2015, ele é resultado de uma parceria entre a CNI, a Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e o Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel).
A primeira etapa do Aliança foi implementada entre 2017 e 2020 em 12 plantas industriais de setores como siderurgia, metalurgia e mineração, cimento, papel e celulose e químico.
Reportagem: Maria José Rodrigues e Diego Abreu
Direção de arte: Daniel Pedrosa
Imagens: Diego Campos
Direção geral: Ariadne Sakkis
Da Agência de Notícias da Indústria